terça-feira, 3 de maio de 2005

A Paixão de Cristo de Mel Gibson

Pasmem-se! Tenho uma amiga que só agora conseguiu arranjar coragem para ver o filme! Já partilhámos pontos de vista e lembrei-me de colar aqui um comentário que escrevi na altura...

Paixão: do latim Passione, sofrimento

Eu vi. Quatro vezes. Gostei. Muito.


Falar deste filme, será sempre uma tarefa algo árdua, ingrata e, talvez, desnecessária. Não porque o filme não mereça que se fale dele... Pelo contrário. Antes, porque, por mais tinta que gastemos a falar dele, nunca conseguiremos suplantar a magnificência da mensagem que transporta... ainda que possamos chegar à conclusão que não é aqui fiel, ou totalmente, passada.


É um filme violento. Eu diria brutalmente violento. Isso não é nada de extraordinário. Nem para as crianças é novidade, habituadas que estão a verem tudo na televisão, num tempo em que até os desenhos animados e os jogos de vídeo vendem, tanto mais, quanto mais sangue e violência contiverem. Isto são os dias de hoje. O que me chocou não foi o sangue. O que chocou muitos dos católicos com quem falei, não foi a flagelação interminável. O que nos chocou foi descobrir que temos consumido uma versão muito light da Paixão de Cristo. Ver como tudo, provavelmente, aconteceu, mexe connosco... obriga-nos a rever a nossa relação com Ele... Porque, para nós, aquele não é um homem qualquer... Nós conhecemo-lO. Temos uma relação de intimidade com Ele... Vendo todo este sofrimento, sentimos compaixão pelo homem que teve ainda mais compaixão por nós.


Depois do parágrafo anterior, será fácil perceber-se que este é um filme para "iniciados". Quer isto dizer que, quem "entende" o motivo do sofrimento de Cristo, mas com um leve sorrisinho descrente, de canto de boca, não verá para além das imagens. O filme dificilmente converterá pessoas que não sejam, já, preferencialmente católicas. Os que acharam que não tinha "história" continuarão a achá-lo e encontrarão apenas violência e uma visão, talvez, distorcida de um católico tradicionalista. A "chave" para compreender o filme não está no filme. É-nos dada. Antes.


Tenho lido algumas críticas e, desculpem dizê-lo, estou pouco interessado em saber se os actores são intocáveis nas suas pronúncias do latim e aramaico... estou pouco interessado em saber se os sacerdotes usavam, ou não, aquelas vestes fora do templo... estou pouco interessado em pormenores técnicos que não nos mostram nada. "O essencial é invisível aos olhos".


Tão maior é o exemplo de Maria... Tão mais ricos são os olhares consoladores dessa Mãe que nada mais anseia para além de aliviar o sofrimento do seu filho. Maria, aqui, sofre como mãe. E que mãe não sofre e não sente vontade de chorar com Ela? Presenciou tudo como quem entendia e esperava o que se estava a passar: "Meu Filho, quando, como e onde, quererás Tu acabar com tudo isto?". Esta é a mesma mãe que limpa do chão o sangue precioso do seu filho. A mesma que deseja correr para Ele, abraçá-lO, consolá-lO e que, ao mesmo tempo, se detém, resguardando-se na sua dor, como quem ganha coragem...


Tão mais interpelante é a expressão do soldado a quem Pedro corta a orelha. Tudo para aquele homem deixa de fazer sentido a partir do momento em que Jesus lhe toca... Todas as suas motivações, certezas, prioridades, tudo tem de ser questionado. Algo de maior, algo de único o transformou. Como a nós. Jesus.


Tão mais inequívoca a caminhada de Simão de Cirene. Não conhecia Jesus... Não queria levar a cruz... Mas fez caminho. E fazer caminho com Jesus transforma um homem. Qualquer homem. E aquele que não queria dar o primeiro passo, é o mesmo que não quer arredar pé do Senhor ao chegar ao Calvário. Não importa em que momento Ele nos fita com o Seu olhar... Não importa como Ele entra nas nossas vidas... Quando entra, reedifica-nos.


Tão mais intrigante é a chamada de atenção do ladrão bom. "Vede, Ele reza por vós!" Nada mais faz sentido. Este momento rompe com o carácter rotineiro destas execuções. Os olhares dos presentes são reveladores. Nota-se o desconforto. Quantos crucificados rezaram, antes, pelos seus executores? Quantos suplicaram a Deus que os perdoasse? Que homem é este, que até ama os que O matam?


Tão mais significativa a presença do Tentador. O que separa. Nem homem, nem mulher... Confunde. Como é suposto. Sempre presente, a sua primordial missão é convencer Jesus de que não é possível cumprir a Vontade do Pai. Tenta separar o homem, do Deus. Nenhum homem pode carregar os pecados do Mundo. Sempre discreto, em segundo plano, mas sempre presente a apontar o caminho mais fácil...


Tão mais profundas as presenças de Maria Madalena e João. Seguidores fiéis, que choram a morte de quem lhes deu vida. Vida abundante. Vida com sentido. Porque isto de ser, por Jesus, chamado a viver uma vida nova, seguindo as Suas pisadas tem que se lhe diga. Como, então, poderiam conceber a ideia de perderem o Mestre? A quem iriam, então, se só Jesus tinha palavras de Vida? Em Maria Madalena, a gratidão de quem experimentou o poder do perdão de Deus; em João a certeza de ter sido amado.


Tão mais reveladoras são as palavras e acções de Jesus: o bom pastor que dá a vida pelas ovelhas. O cordeiro que não grita, não argumenta, não resiste... O mesmo que lavara os pés aos discípulos, fizera inúmeros milagres e fora acolhido como rei à entrada em Jerusalém. Esse mesmo. Agora entregue como criminoso. Condenado pelo crime de ser quem era. Filho de Deus. O mesmo que fala de Verdade a Pilatos... O que se mantém silencioso, incomodativamente silencioso, perante Herodes... "O Caminho, a Verdade e a Vida" dá livremente a Sua vida. Derrama livremente o Seu precioso sangue. Porque ama. Porque NOS ama.


Quem quiser prender-se com os tais aspectos técnicos, poderá fazê-lo. Muitos serão os defeitos e as imprecisões que, provavelmente, encontrará. Quanto a mim, prefiro ir mais além. Porque vi a mais perturbante e fascinante representação de algo absurdamente belo e misterioso. O filme, é só um pretexto para se falar disso.

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