quarta-feira, 26 de outubro de 2005

A marca


"Nesse dia não te esperava
Entraste no meu coração
Sem eu to pedir
Ó meu rei
Como um desconhecido qualquer

E puseste o teu selo de eternidade
nos instantes fugazes da minha vida
"




Hoje, tinha este poema na caixa de email. Enviou-mo um amigo que aprendeu a ver para além das letras garrafais do lado sensacionalista da vida e se detém a ler nas letras pequeninas do rodapé, onde se esconde, muitas vezes, o essencial. Um amigo que sabe que à vida sucede mais Vida e que todos os momentos convergem para um Momento. Um amigo marcado. Para a eternidade.

sexta-feira, 7 de outubro de 2005

A árvore da vida



Ao Sr. Pereira,
no culminar dos seus 93 anos

A grande árvore pôs-se a pensar. Dava-lhe sempre para pensar enquanto a sua folhagem era sacudida pela música dos dias bonitos: o esplendor do sol, o som da água do riacho próximo, o assobio discreto da brisa que trazia consigo os aromas de cenários longínquos... Sentia-se bem. Sentia-se muito bem. Vivera já muitos anos e habituara-se a ver outras árvores crescerem na sua sombra.
Era uma grande árvore. A maior das redondezas. Por vezes, olhava para trás, na imensidão do tempo, e tentava perceber como tudo começara. Não sabia como tinha chegado ali: podia ter sido plantada pelos homens ou trazida de longe, ainda semente, no bico de algum pássaro... podia ter acontecido de muitas formas, mas gostava de alimentar a ideia de que tinha vindo à boleia do vento, por entre vales e montanhas escarpadas, enfrentando obstáculos e dificuldades e escolhendo aquele bocadinho de terra, bem no alto da colina, para se deixar cair. Era uma semente cheia de força de vontade! Tratou logo de se agarrar à terra o mais que pôde e sempre sonhou crescer o suficiente para conseguir ver o mar.
Todos os dias surgiam como se fossem um sempre novo e espectacular concerto: o sol, que surgia muito de mansinho no horizonte; as flores que começavam a pintar as suas pétalas bem cedo, para se revelarem em todo o seu esplendor à luz do dia; a água do riacho, que saltitava de pedra em pedra, como que a saborear a novidade da manhã... Ela também cuidava todas as manhãs da sua folhagem. Deixava cair as folhas velhas e secas, retocava o tom de cada uma das que mantinha e deixava-se ficar à espera. Era sempre o melhor momento do dia! Sabia que, assim que a sua frondosa folhagem fosse tocada pelos raios do sol, explodiria num fogo-de-artíficio de tons de verde e reflexos brilhantes. Era feliz. Sentia-se viva.
Parecia que todo o Mundo girava em seu redor. As aves escolhiam os seus ramos longos e fortes para aí construírem os seus ninhos e ela sentia-se muito orgulhosa por poder testemunhar e servir de cenário aos primeiros dias de vida de inúmeros passarinhos que lhe acenavam, como que a agradecer, sempre que, já adultos, passavam por perto. Os seus frutos eram os mais apreciados das redondezas e era a sua sombra a que as crianças preferiam para brincar.
O tempo foi passando e a árvore foi ficando cada vez mais velha... as suas folhas perderam o brilho da juventude, os seus ramos estavam já mais fracos e quebradiços e os frutos eram em muito menor quantidade do que noutros tempos. Sentia-se fraca e temia deixar desapontados todos os que durante a sua vida, de alguma maneira, dependeram dela. Sentia-se morrer e não queria levar consigo a vida que a tantos ajudara a viver.
Até que uma bela manhã a árvore desfrutou do seu último grande concerto e, logo depois da explosão de cor das folhas, agora escassas, amarelas e ressequidas fechou os olhos e rendeu-se, triste, à inevitabilidade do desaparecimento da sua vida. Era o fim. Sabia-o quando morreu.
Não viveu o suficiente para ver a força de vontade da última das suas sementes, que aproveitou o sopro de despedida do vento e se deixou cair na terra a pouco mais de um metro do seu imponente tronco...

sábado, 6 de agosto de 2005

...chegar ao mar!


in O Primeiro Dia, de João César das Neves, Lucerna


«Numa tarde, quando já era muito idosa, a um genro, que protestava contra a política de Pequim, a corrupção dos funcionários e a miséria dos camponeses, Wai disse:

- A nossa aldeia é pobre e triste. A sua maior riqueza é o rio. Mas a única razão porque o rio passa por esta aldeia é porque quer chegar ao mar. A única razão porque o rio passa por todas as terras é porque quer chegar ao mar. É só isso que o rio quer. Só porque quer chegar ao mar é que passa por todas as terras e a todas dá vida. Na sua ânsia de chegar ao mar, faz crescer as plantas, alaga os arrozais, transporta troncos, arrasta a terra fértil, empurra os barcos e as pessoas, refresca os trabalhadores.

Mas o rio nem nota que faz isso, porque está demasiado ocupado noutra coisa. O rio não protesta com as terras por onde passa, não se importa de ser usado, nem liga quando o desviamos, porque o seu único objectivo é atingir o mar.

Sacrifica tudo ao seu propósito único e supremo de lá chegar. Tanto lhe faz passar por verdes prados ou por vales tenebrosos. Ruge nos rochedos escarpados e dorme nas planícies lamacentas, mas a única coisa que lhe interessa é seguir sempre, da melhor maneira possível, para o mar. É só isso que o rio quer.

A única razão por que o rio passa por todas as terras, sem se negar a nenhuma, é querer chegar ao mar.

Por isso, só por isso, é que dá vida a todos.»






Talvez o mais importante desta história não seja o rio... Talvez este rio seja uma pessoa, talvez seja qualquer pessoa... Talvez uma pessoa que ainda não saiba para onde e por que corre... Talvez uma pessoa que não tenha, ainda, ânsia de chegar a lado nenhum...

Ser como o rio é sabermos onde está o nosso tesouro. Ser como o rio, é viver de olhos postos nesse tesouro, orientarmo-nos para ele, sem nos preocuparmos com o tempo, a vida, o esforço, o sofrimento, o bem, as lágrimas e os sorrisos que gastamos até o encontrarmos.

Ser como o rio é dar a vida a tudo por que passamos no caminho.

terça-feira, 2 de agosto de 2005

Para ser grande, sê inteiro

Para ser grande, sê inteiro:

nada Teu exagera ou exclui.

Sê todo em cada coisa.

Põe quanto és

No mínimo que fazes.

Assim em cada lago a lua toda

Brilha, porque alta vive.

Ricardo Reis

terça-feira, 17 de maio de 2005

Vai...


Por Paulo Geraldo http://cidadela.com.sapo.pt/)


Para sonhar o que poucos ousaram sonhar. Para realizar aquilo que já te disseram que não podia ser feito. Para alcançar a estrela inalcançável.

Essa será a tua tarefa: alcançar essa estrela. Sem quereres saber quão longe ela se encontra; nem de quanta esperança necessitarás; nem se poderás ser maior do que o teu medo.

Apenas nisso vale a pena gastares a tua vida.

Para carregar sobre os ombros o peso do mundo. Para lutar pelo bem sem descanso e sem cansaço. Para enxugar todas as lágrimas ou para lhes dar um sentido luminoso.

Levarás a tua juventude a lugares onde se pode morrer, porque precisam lá de ti. Pisarás terrenos que muitos valentes não se atreveriam a pisar. Partirás para longe, talvez sem saíres do mesmo lugar.

Para amar com pureza e castidade. Para devolver à palavra "amigo" o seu sabor a vento e rocha. Para ter muitos filhos nascidos também do teu corpo e - ou - muitos mais nascidos apenas do teu coração.

Para dar de novo todo o valor às palavras dos homens. Para descobrir os caminhos que há no ventre da noite. Para vencer o medo.

Não medirás as tuas forças. O anjo do bem te levará consigo, sem permitir que os teus pés se magoem nas pedras. Ele, que vigia o sono das crianças e coloca nos seus olhos uma luz pura que apetece beijar, é também guerreiro forte.

Verás a tua mão tocar rochedos grandes e fazer brotar deles água verdadeira. Olharás para tudo com espanto. Saberás que, sendo tu nada, és capaz de uma flor no esterco e de um archote no escuro.

Para sofrer aquilo que não sabias ser capaz de sofrer. Para viver daquilo que mata. Para saber as cores que existem por dentro do silêncio.

Continuarás quando os teus braços estiverem fatigados. Olharás para as tuas cicatrizes sem tristeza. Tu saberás que um homem pode seguir em frente apesar de tudo o que dói, e que só assim é homem.

Para gritar, mesmo calado, os verdadeiros nomes de tudo. Para tratar como lixo as bugigangas que outros acariciam. Para mostrar que se pode viver de luar quando se vai por um caminho que é principalmente de cor e espuma.

Levantarás do chão cada pedra das ruínas em que transformaram tudo isto. Uma força que não é tua nos teus braços. Beijá-las-ás e voltarás a pô-las nos seus lugares.

Para ir mais além. Para passar cantando perto daqueles que viveram poucos anos e já envelheceram. Para puxar por um braço, com carinho, esses que passam a tarde sentados em frente de uma cerveja.

Dirás até ao último momento: "ainda não é suficiente". Disposto a ir às portas do abismo salvar uma flor que resvalava. Disposto a dar tudo pelo que parece ser nada. Disposto a ter contigo dores que são semente de alegrias talvez longe.

Para tocar o intocável. Para haver em ti um sorriso que a morte não te possa arrancar. Para encontrar a luz de cuja existência sempre suspeitaste.

Para alcançar a estrela inalcançável.

terça-feira, 3 de maio de 2005

A Paixão de Cristo de Mel Gibson

Pasmem-se! Tenho uma amiga que só agora conseguiu arranjar coragem para ver o filme! Já partilhámos pontos de vista e lembrei-me de colar aqui um comentário que escrevi na altura...

Paixão: do latim Passione, sofrimento

Eu vi. Quatro vezes. Gostei. Muito.


Falar deste filme, será sempre uma tarefa algo árdua, ingrata e, talvez, desnecessária. Não porque o filme não mereça que se fale dele... Pelo contrário. Antes, porque, por mais tinta que gastemos a falar dele, nunca conseguiremos suplantar a magnificência da mensagem que transporta... ainda que possamos chegar à conclusão que não é aqui fiel, ou totalmente, passada.


É um filme violento. Eu diria brutalmente violento. Isso não é nada de extraordinário. Nem para as crianças é novidade, habituadas que estão a verem tudo na televisão, num tempo em que até os desenhos animados e os jogos de vídeo vendem, tanto mais, quanto mais sangue e violência contiverem. Isto são os dias de hoje. O que me chocou não foi o sangue. O que chocou muitos dos católicos com quem falei, não foi a flagelação interminável. O que nos chocou foi descobrir que temos consumido uma versão muito light da Paixão de Cristo. Ver como tudo, provavelmente, aconteceu, mexe connosco... obriga-nos a rever a nossa relação com Ele... Porque, para nós, aquele não é um homem qualquer... Nós conhecemo-lO. Temos uma relação de intimidade com Ele... Vendo todo este sofrimento, sentimos compaixão pelo homem que teve ainda mais compaixão por nós.


Depois do parágrafo anterior, será fácil perceber-se que este é um filme para "iniciados". Quer isto dizer que, quem "entende" o motivo do sofrimento de Cristo, mas com um leve sorrisinho descrente, de canto de boca, não verá para além das imagens. O filme dificilmente converterá pessoas que não sejam, já, preferencialmente católicas. Os que acharam que não tinha "história" continuarão a achá-lo e encontrarão apenas violência e uma visão, talvez, distorcida de um católico tradicionalista. A "chave" para compreender o filme não está no filme. É-nos dada. Antes.


Tenho lido algumas críticas e, desculpem dizê-lo, estou pouco interessado em saber se os actores são intocáveis nas suas pronúncias do latim e aramaico... estou pouco interessado em saber se os sacerdotes usavam, ou não, aquelas vestes fora do templo... estou pouco interessado em pormenores técnicos que não nos mostram nada. "O essencial é invisível aos olhos".


Tão maior é o exemplo de Maria... Tão mais ricos são os olhares consoladores dessa Mãe que nada mais anseia para além de aliviar o sofrimento do seu filho. Maria, aqui, sofre como mãe. E que mãe não sofre e não sente vontade de chorar com Ela? Presenciou tudo como quem entendia e esperava o que se estava a passar: "Meu Filho, quando, como e onde, quererás Tu acabar com tudo isto?". Esta é a mesma mãe que limpa do chão o sangue precioso do seu filho. A mesma que deseja correr para Ele, abraçá-lO, consolá-lO e que, ao mesmo tempo, se detém, resguardando-se na sua dor, como quem ganha coragem...


Tão mais interpelante é a expressão do soldado a quem Pedro corta a orelha. Tudo para aquele homem deixa de fazer sentido a partir do momento em que Jesus lhe toca... Todas as suas motivações, certezas, prioridades, tudo tem de ser questionado. Algo de maior, algo de único o transformou. Como a nós. Jesus.


Tão mais inequívoca a caminhada de Simão de Cirene. Não conhecia Jesus... Não queria levar a cruz... Mas fez caminho. E fazer caminho com Jesus transforma um homem. Qualquer homem. E aquele que não queria dar o primeiro passo, é o mesmo que não quer arredar pé do Senhor ao chegar ao Calvário. Não importa em que momento Ele nos fita com o Seu olhar... Não importa como Ele entra nas nossas vidas... Quando entra, reedifica-nos.


Tão mais intrigante é a chamada de atenção do ladrão bom. "Vede, Ele reza por vós!" Nada mais faz sentido. Este momento rompe com o carácter rotineiro destas execuções. Os olhares dos presentes são reveladores. Nota-se o desconforto. Quantos crucificados rezaram, antes, pelos seus executores? Quantos suplicaram a Deus que os perdoasse? Que homem é este, que até ama os que O matam?


Tão mais significativa a presença do Tentador. O que separa. Nem homem, nem mulher... Confunde. Como é suposto. Sempre presente, a sua primordial missão é convencer Jesus de que não é possível cumprir a Vontade do Pai. Tenta separar o homem, do Deus. Nenhum homem pode carregar os pecados do Mundo. Sempre discreto, em segundo plano, mas sempre presente a apontar o caminho mais fácil...


Tão mais profundas as presenças de Maria Madalena e João. Seguidores fiéis, que choram a morte de quem lhes deu vida. Vida abundante. Vida com sentido. Porque isto de ser, por Jesus, chamado a viver uma vida nova, seguindo as Suas pisadas tem que se lhe diga. Como, então, poderiam conceber a ideia de perderem o Mestre? A quem iriam, então, se só Jesus tinha palavras de Vida? Em Maria Madalena, a gratidão de quem experimentou o poder do perdão de Deus; em João a certeza de ter sido amado.


Tão mais reveladoras são as palavras e acções de Jesus: o bom pastor que dá a vida pelas ovelhas. O cordeiro que não grita, não argumenta, não resiste... O mesmo que lavara os pés aos discípulos, fizera inúmeros milagres e fora acolhido como rei à entrada em Jerusalém. Esse mesmo. Agora entregue como criminoso. Condenado pelo crime de ser quem era. Filho de Deus. O mesmo que fala de Verdade a Pilatos... O que se mantém silencioso, incomodativamente silencioso, perante Herodes... "O Caminho, a Verdade e a Vida" dá livremente a Sua vida. Derrama livremente o Seu precioso sangue. Porque ama. Porque NOS ama.


Quem quiser prender-se com os tais aspectos técnicos, poderá fazê-lo. Muitos serão os defeitos e as imprecisões que, provavelmente, encontrará. Quanto a mim, prefiro ir mais além. Porque vi a mais perturbante e fascinante representação de algo absurdamente belo e misterioso. O filme, é só um pretexto para se falar disso.

sábado, 2 de abril de 2005

João Paulo II - 16.10.1978 - 02.04.2005

"A cruz significa dar a vida pelo irmão, para poder salvá-la juntamente com a sua.
A cruz significa que o amor é mais forte que o ódio e a vingança, que é melhor dar que receber e que a entrega é mais eficaz que a exigência.
A cruz significa que não há fracasso sem esperança, sombras sem luz, tormenta sem porto de salvação.
A cruz significa que o amor não tem fronteiras: sai ao encontro do teu próximo e não esqueças quem está afastado!
A cruz significa que Deus é sempre maior que nós, os homens. Maior que o nosso próprio fracasso.
E que a vida, é mais forte que a morte." João Paulo II
A vida, só pode mesmo ser mais forte que a morte. Penso que essa foi a mensagem que João Paulo II fez questão de passar ao Mundo nestes últimos anos do seu pontificado. E, o sofrimento, que revelado ao Mundo era motivo de escândalo, de críticas, de incompreensão, no seu íntimo, era caminho de encontro com o Pai.
João Paulo II soube dizê-lo como ninguém. Soube dizer que a vida não se conforma com os limites que os homens lhe queiram impor.
João Paulo II foi um homem que sempre quis levar Deus ao encontro de todos os Seus filhos.
E, como filho, sabia que a felicidade só pode estar em deixar-se encontrar pelo Pai.
Tottus Tuus!