sexta-feira, 12 de abril de 2013

SEM FAMA E SEM NOME


Era uma vez um burro. Um burro sem fama e sem nome, daqueles a quem chamamos simplesmente «burro» quando nos referimos a ele.

Esse burro sem fama e sem nome vivia uma vida anónima e pertencia a uma família de lavradores que o utilizavam nas suas deslocações, no seu trabalho e no transporte de mercadorias e lenha.

A vida desse burro, era uma vida igual à de tantos outros burros do seu tempo. Quando não estava a trabalhar, deixavam-no amarrado num pequeno quintal de onde conseguia ver pouco mais do que a encosta seca onde fora construída a casa dos seus donos. E pensava muitas vezes como era monótona a sua vida de burro, sem fama e sem nome.

Um dia, estava ele a descansar à sombra de um sicómoro no quintal dos seus donos, quando uns homens entraram no quintal e desataram a corda que o amarrava com a intenção de o levarem. O dono ainda correra a averiguar o que se passava, mas pareceu ter ficado satisfeito com a resposta estranha que lhe deram: «O Mestre precisa dele».

Sem perceber nada, o burro lá foi com a esperança de estar envolvido numa grande aventura. Em seguida, os homens deitaram-lhe por cima as suas capas, como ele já tinha visto fazer com os elegantes cavalos dos grandes senhores que passavam na estrada poeirenta que conduzia à cidade e o burro, sem fama e sem nome, começou a imaginar o que pensariam agora os seus donos (os mesmos que nunca lhe tinham dado grande atenção), se o vissem assim vestido, à maneira dos cavalos que serviam a nobreza.

Quase nem notou que fizeram subir para a sua garupa, um homem a quem todos chamavam Jesus, e lá se deixou conduzir para a entrada da cidade como quem finalmente toma posse do seu destino dourado. À sua passagem, os homens deitavam as capas por terra para que lhes passasse por cima, as crianças e as mulheres agitavam no ar ramos de palmeira e até as árvores pareciam inclinar-se ligeiramente como que a saudar a sua passagem. Ouviam-se aplausos e a multidão gritava: «Hossana ao Filho de David!»

E o burro, outrora sem fama e sem nome, pensou: «Agora sim! Agora sou tratado como eu mereço. Os meus donos mantinham-me fechado naquele quintal apertado, forçavam-me a transportá-los e a trabalhar e nunca me deram o devido valor. Esta multidão, finalmente, está a dar-me o que eu mereço. Eu devo ser mesmo importante para eles, senão não me saudariam desta forma.» E esforçava-se por adoptar uma postura correspondente com a sua nova dignidade, alongando o mais que podia o atarracado pescoço.

Quando o cortejo, finalmente, chegou ao seu destino, o burro reparou no homem que viajava no seu dorso e a quem todos chamavam Jesus e ficou muito intrigado quando percebeu que todos os que o seguiam e o aclamavam durante o pequeno percurso até à cidade, lhe voltaram as costas assim que esse homem desmontou e começou a caminhar pelo meio da gente.

E ninguém olhou sequer para trás quando o puxaram pela corda e o levaram de volta para o quintal dos seus donos. Sem perceber nada, o burro lá voltou à sua vida de sempre, sem fama e sem nome.

Hugo Gonçalves, 2013

terça-feira, 3 de abril de 2012

O estandarte da cruz


Cruz do Mosaico da Ábside
da Basílica de São Clemente em Roma

O estandarte da Cruz proclama ao mundo
A morte de Jesus e a sua glória,

Porque o autor de todo o universo
Contemplamos suspenso do madeiro.


Com um golpe de lança trespassado,
Ficou aberto o Coração de Cristo,
Manando sangue e água como rio,
Para lavar os crimes deste mundo.


Ó árvore fecunda e refulgente,
Ornada com a túnica real,
Sois tálamo, sois trono e sois altar,
Para o corpo chagado e glorioso.


Ó Cruz bendita, só tu nos abriste
Os braços de Jesus, o Redentor,
Balança do resgate que arrancaste
Nossas almas das mãos do inimigo.


Cruz do Senhor, és única esperança,
No tempo da tristeza e da Paixão.
Aumenta nos cristãos a luz da fé,
Sê para os homens o sinal da paz.


Este hino, um dos mais belos cantos à Cruz e à Paixão do Senhor, é uma adaptação para português, feita pelo poeta Fernando Melro, a partir do hino Vexilla Regis (Os estandartes do Rei). Este hino, foi escrito por Venâncio Fortunato, Bispo de Poitiers, e foi cantado pela primeira vez no dia 19 de Novembro de 569, na procissão que levou uma relíquia da Santa Cruz, oferecida pelo Imperador Bizantino Justino II,  de Tours para o Mosteiro da Santa Cruz de Poitiers.

O seu uso litúrgico original, no Missal Romano, era o momento em que, na Sexta-Feira Santa, o Santíssimo Sacramento é levado em procissão para o altar principal. No entanto, actualmente, é principalmente usado na Liturgia das Horas, em que aparece indicado como Hino de Vésperas do Sábado Antes do Domingo de Ramos até à Quinta-Feira Santa e da Festa da Exaltação da Santa Cruz (14 Setembro).

Este hino foi interpretado simbolicamente para representar o Baptismo, a Eucaristia e os outros sacramentos. Os autores antigos dizem que tal como os estandartes dos reis e dos principes do mundo, os estandartes de Cristo são a Cruz, o Flagelo, a Lança e os outros instrumentos da Paixão com os quais ele lutou contra o príncipe deste mundo e venceu.

O esplendor e triunfo da primeira quadra podem ser melhor apreciados se nos lembrarmos da ocasião em que o Hino foi cantado pela primeira vez, em que na pompa e circunstância de uma procissão em que participavam desde os mais ilustres de entre a realeza, aos mais pobres de entre os pobres, um só estandarte se destacava: a CRUZ. Como que a dizer: "Quando Eu for levantado da terra, atrairei todos a Mim."

Aqui fica também a versão em latim:

Vexilla regis prodeunt,
fulget crucis mysterium,
quo carne carnis conditor
suspensus est patibulo.


Confixa clavis viscera
tendens manus, vestigia
redemptionis gratia
hic inmolata est hostia.


Quo vulneratus insuper
mucrone diro lanceae,
ut nos lavaret crimine,
manavit unda et sanguine.


Inpleta sunt quae concinit
David fideli carmine,
dicendo nationibus:
regnavit a ligno deus.


Arbor decora et fulgida,
ornata regis purpura,
electa, digno stipite
tam sancta membra tangere!


Beata cuius brachiis
pretium pependit saeculi!
statera facta est corporis
praedam tulitque Tartari.

 
Fundis aroma cortice,
vincis sapore nectare,
iucunda fructu fertili
plaudis triumpho nobili.


Salve ara, salve victima
de passionis gloria,
qua vita mortem pertulit
et morte vitam reddidit.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Das Homilias de São Bernardo, abade, em louvor da Virgem Mãe

Hom. 4, 8-9: Opera omnia, Edit. Cisterc. 4 (1966), 53-54)(Séc. XII)

Todo o mundo à espera da resposta de Maria
Ouviste, ó Virgem, a voz do Anjo: Conceberás e darás à luz um filho. Ouviste-o dizer que não será por obra de varão, mas por obra do Espírito Santo. O Anjo aguarda a resposta: é tempo de ele voltar para Deus que o enviou. Também nós, miseravelmente oprimidos por uma sentença de condenação, também nós, Senhora, esperamos a tua palavra de misericórdia.

Em tuas mãos está o preço da nossa salvação. Se consentes, seremos imediatamente libertados. Todos fomos criados pelo Verbo eterno de Deus, mas agora vemo-nos condenados à morte: a tua breve resposta pode renovar-nos e restituir-nos à vida.

Isto te suplica, ó piedosa Virgem, o pobre Adão, desterrado do paraíso com toda a sua mísera posteridade; isto te suplicam Abraão e David. Imploram-te todos os santos Patriarcas, teus antepassados, também eles retidos na região das sombras da morte. Todo o mundo, prostrado a teus pés, espera a tua resposta: da tua palavra depende a consolação dos infelizes, a redenção dos cativos, a liberdade dos condenados, a salvação de todos os filhos de Adão, de toda a tua linhagem.

Dá, depressa, ó Virgem, a tua resposta. Responde sem demora ao Anjo, ou, para melhor dizer, ao Senhor por meio do Anjo. Pronuncia uma palavra e recebe a Palavra. Profere a tua palavra humana e concebe a divina. Diz uma palavra transitória e acolhe a Palavra eterna.

Porque demoras? Porque receias? Crê, consente e recebe. Encha-se de coragem a tua humildade e de confiança a tua modéstia. Não convém de modo algum, neste momento, que a tua simplicidade virginal esqueça a prudência. Virgem prudente, não temas neste caso a presunção, porque, embora seja louvável aliar a modéstia ao silêncio, mais necessário é, agora aliar a piedade à palavra.

Abre, ó Virgem santa, o coração à fé, os lábios ao consentimento, as entranhas ao Criador. Eis que o desejado de todas as nações está à tua porta e chama. Se te demoras e Ele passa adiante, terás então de recomeçar dolorosamente a procurar o amado da tua alma. Levanta-te, corre, abre. Levanta-te pela fé, corre pela devoção, abre pelo consentimento.

Eis a serva do Senhor, disse a Virgem, faça-se em mim segundo a tua palavra.