sábado, 12 de junho de 2010

Liturgia e música – Um mundo de sentido(s)

Contributo a partir da obra Soli Deo Gloria, de José Paulo da Costa Antunes

Um jovem e talentoso pianista quis tocar uma das peças mais difíceis do “Catálogo dos Pássaros” de Messian. Foi o próprio compositor que um dia escreveu acerca dele dizendo: «Ele teve de se familiarizar com as paisagens e com os pássaros antes de se meter ao trabalho; ele foi de uma honestidade exemplar e o resultado é magnífico» (Messian 221). Isto faz todo o sentido e pode ser aplicado a todas as formas de arte. Imagine-se um pintor a querer exprimir o voo de uma águia sem nunca se ter ocupado de a observar deslocando-se aos locais onde elas se encontram. Por mais talentoso que fosse o pintor, faltaria verdade na sua obra. Só quem agarra as coisas por dentro e gasta tempo em fazê-las suas, pode dizê-las aos outros na sua arte.

Estas afirmações encontram um sentido ainda maior quando nos referimos à arte litúrgica, mais propriamente a música, que é o objecto do nosso estudo. Aqui é essencial, não só estar muito familiarizado com o que é a música, mas também dominar o verdadeiro sentido da liturgia e a riqueza dos vários momentos que a constituem. Aqui, liturgia e música existem porque estão a acontecer, sempre num diálogo entre alguém que chama e outro alguém que responde, entre alguém que fala e outro alguém que escuta.

Se, na liturgia, acontece o encontro entre Deus e o homem, numa relação única de amor que parte da iniciativa de Deus, que outra linguagem, que não a artística, poderia expressar melhor esse momento? O homem sempre usou das suas capacidades artísticas para manifestar o espanto, o deslumbramento e a sua surpresa perante a gratuidade do amor divino. A arte é a linguagem, por excelência, para dizer o transcendente, ela é a resposta generosa do homem que não pode permanecer calado perante Deus que, assim, o interpela.

Olhando as coisas deste modo, podemos dizer que a música tem, na liturgia, um papel fundamental e insubstituível. Só que, aí, há que procurar encontrar um percurso que permita que a música se realize como arte, sem no entanto esquecer que é necessário encontrar uma estética que lhe permita enquadrar-se no todo da acção celebrativa em que tem lugar.

Podemos dizer, com verdade, que é assumido que após o II Concílio do Vaticano, a música litúrgica se afirmou como sendo parte integrante, e necessária, da liturgia. O que ainda falta fazer é passar para a celebração a mudança de mentalidade e atitude que daí derivam. «Cantar na liturgia continua a ser algo que se reduz à dimensão do estético e não vai à raiz da sacramentalidade, como deveria» (José Costa Antunes).

Cantar rezando e rezar cantando deve ser o horizonte que perseguimos ao pensar a música para a liturgia. É inegável a facilidade com que a música ajuda o homem a transcender-se, mas atenção para que não seja uma melodia bem executada e, no entanto, estéril. Dizia Santo Agostinho que «cantar é próprio de quem ama».

Há-de ser, tem de ser, esse amor a fazer ecoar o canto do nosso coração.