terça-feira, 17 de maio de 2005

Vai...


Por Paulo Geraldo http://cidadela.com.sapo.pt/)


Para sonhar o que poucos ousaram sonhar. Para realizar aquilo que já te disseram que não podia ser feito. Para alcançar a estrela inalcançável.

Essa será a tua tarefa: alcançar essa estrela. Sem quereres saber quão longe ela se encontra; nem de quanta esperança necessitarás; nem se poderás ser maior do que o teu medo.

Apenas nisso vale a pena gastares a tua vida.

Para carregar sobre os ombros o peso do mundo. Para lutar pelo bem sem descanso e sem cansaço. Para enxugar todas as lágrimas ou para lhes dar um sentido luminoso.

Levarás a tua juventude a lugares onde se pode morrer, porque precisam lá de ti. Pisarás terrenos que muitos valentes não se atreveriam a pisar. Partirás para longe, talvez sem saíres do mesmo lugar.

Para amar com pureza e castidade. Para devolver à palavra "amigo" o seu sabor a vento e rocha. Para ter muitos filhos nascidos também do teu corpo e - ou - muitos mais nascidos apenas do teu coração.

Para dar de novo todo o valor às palavras dos homens. Para descobrir os caminhos que há no ventre da noite. Para vencer o medo.

Não medirás as tuas forças. O anjo do bem te levará consigo, sem permitir que os teus pés se magoem nas pedras. Ele, que vigia o sono das crianças e coloca nos seus olhos uma luz pura que apetece beijar, é também guerreiro forte.

Verás a tua mão tocar rochedos grandes e fazer brotar deles água verdadeira. Olharás para tudo com espanto. Saberás que, sendo tu nada, és capaz de uma flor no esterco e de um archote no escuro.

Para sofrer aquilo que não sabias ser capaz de sofrer. Para viver daquilo que mata. Para saber as cores que existem por dentro do silêncio.

Continuarás quando os teus braços estiverem fatigados. Olharás para as tuas cicatrizes sem tristeza. Tu saberás que um homem pode seguir em frente apesar de tudo o que dói, e que só assim é homem.

Para gritar, mesmo calado, os verdadeiros nomes de tudo. Para tratar como lixo as bugigangas que outros acariciam. Para mostrar que se pode viver de luar quando se vai por um caminho que é principalmente de cor e espuma.

Levantarás do chão cada pedra das ruínas em que transformaram tudo isto. Uma força que não é tua nos teus braços. Beijá-las-ás e voltarás a pô-las nos seus lugares.

Para ir mais além. Para passar cantando perto daqueles que viveram poucos anos e já envelheceram. Para puxar por um braço, com carinho, esses que passam a tarde sentados em frente de uma cerveja.

Dirás até ao último momento: "ainda não é suficiente". Disposto a ir às portas do abismo salvar uma flor que resvalava. Disposto a dar tudo pelo que parece ser nada. Disposto a ter contigo dores que são semente de alegrias talvez longe.

Para tocar o intocável. Para haver em ti um sorriso que a morte não te possa arrancar. Para encontrar a luz de cuja existência sempre suspeitaste.

Para alcançar a estrela inalcançável.

terça-feira, 3 de maio de 2005

A Paixão de Cristo de Mel Gibson

Pasmem-se! Tenho uma amiga que só agora conseguiu arranjar coragem para ver o filme! Já partilhámos pontos de vista e lembrei-me de colar aqui um comentário que escrevi na altura...

Paixão: do latim Passione, sofrimento

Eu vi. Quatro vezes. Gostei. Muito.


Falar deste filme, será sempre uma tarefa algo árdua, ingrata e, talvez, desnecessária. Não porque o filme não mereça que se fale dele... Pelo contrário. Antes, porque, por mais tinta que gastemos a falar dele, nunca conseguiremos suplantar a magnificência da mensagem que transporta... ainda que possamos chegar à conclusão que não é aqui fiel, ou totalmente, passada.


É um filme violento. Eu diria brutalmente violento. Isso não é nada de extraordinário. Nem para as crianças é novidade, habituadas que estão a verem tudo na televisão, num tempo em que até os desenhos animados e os jogos de vídeo vendem, tanto mais, quanto mais sangue e violência contiverem. Isto são os dias de hoje. O que me chocou não foi o sangue. O que chocou muitos dos católicos com quem falei, não foi a flagelação interminável. O que nos chocou foi descobrir que temos consumido uma versão muito light da Paixão de Cristo. Ver como tudo, provavelmente, aconteceu, mexe connosco... obriga-nos a rever a nossa relação com Ele... Porque, para nós, aquele não é um homem qualquer... Nós conhecemo-lO. Temos uma relação de intimidade com Ele... Vendo todo este sofrimento, sentimos compaixão pelo homem que teve ainda mais compaixão por nós.


Depois do parágrafo anterior, será fácil perceber-se que este é um filme para "iniciados". Quer isto dizer que, quem "entende" o motivo do sofrimento de Cristo, mas com um leve sorrisinho descrente, de canto de boca, não verá para além das imagens. O filme dificilmente converterá pessoas que não sejam, já, preferencialmente católicas. Os que acharam que não tinha "história" continuarão a achá-lo e encontrarão apenas violência e uma visão, talvez, distorcida de um católico tradicionalista. A "chave" para compreender o filme não está no filme. É-nos dada. Antes.


Tenho lido algumas críticas e, desculpem dizê-lo, estou pouco interessado em saber se os actores são intocáveis nas suas pronúncias do latim e aramaico... estou pouco interessado em saber se os sacerdotes usavam, ou não, aquelas vestes fora do templo... estou pouco interessado em pormenores técnicos que não nos mostram nada. "O essencial é invisível aos olhos".


Tão maior é o exemplo de Maria... Tão mais ricos são os olhares consoladores dessa Mãe que nada mais anseia para além de aliviar o sofrimento do seu filho. Maria, aqui, sofre como mãe. E que mãe não sofre e não sente vontade de chorar com Ela? Presenciou tudo como quem entendia e esperava o que se estava a passar: "Meu Filho, quando, como e onde, quererás Tu acabar com tudo isto?". Esta é a mesma mãe que limpa do chão o sangue precioso do seu filho. A mesma que deseja correr para Ele, abraçá-lO, consolá-lO e que, ao mesmo tempo, se detém, resguardando-se na sua dor, como quem ganha coragem...


Tão mais interpelante é a expressão do soldado a quem Pedro corta a orelha. Tudo para aquele homem deixa de fazer sentido a partir do momento em que Jesus lhe toca... Todas as suas motivações, certezas, prioridades, tudo tem de ser questionado. Algo de maior, algo de único o transformou. Como a nós. Jesus.


Tão mais inequívoca a caminhada de Simão de Cirene. Não conhecia Jesus... Não queria levar a cruz... Mas fez caminho. E fazer caminho com Jesus transforma um homem. Qualquer homem. E aquele que não queria dar o primeiro passo, é o mesmo que não quer arredar pé do Senhor ao chegar ao Calvário. Não importa em que momento Ele nos fita com o Seu olhar... Não importa como Ele entra nas nossas vidas... Quando entra, reedifica-nos.


Tão mais intrigante é a chamada de atenção do ladrão bom. "Vede, Ele reza por vós!" Nada mais faz sentido. Este momento rompe com o carácter rotineiro destas execuções. Os olhares dos presentes são reveladores. Nota-se o desconforto. Quantos crucificados rezaram, antes, pelos seus executores? Quantos suplicaram a Deus que os perdoasse? Que homem é este, que até ama os que O matam?


Tão mais significativa a presença do Tentador. O que separa. Nem homem, nem mulher... Confunde. Como é suposto. Sempre presente, a sua primordial missão é convencer Jesus de que não é possível cumprir a Vontade do Pai. Tenta separar o homem, do Deus. Nenhum homem pode carregar os pecados do Mundo. Sempre discreto, em segundo plano, mas sempre presente a apontar o caminho mais fácil...


Tão mais profundas as presenças de Maria Madalena e João. Seguidores fiéis, que choram a morte de quem lhes deu vida. Vida abundante. Vida com sentido. Porque isto de ser, por Jesus, chamado a viver uma vida nova, seguindo as Suas pisadas tem que se lhe diga. Como, então, poderiam conceber a ideia de perderem o Mestre? A quem iriam, então, se só Jesus tinha palavras de Vida? Em Maria Madalena, a gratidão de quem experimentou o poder do perdão de Deus; em João a certeza de ter sido amado.


Tão mais reveladoras são as palavras e acções de Jesus: o bom pastor que dá a vida pelas ovelhas. O cordeiro que não grita, não argumenta, não resiste... O mesmo que lavara os pés aos discípulos, fizera inúmeros milagres e fora acolhido como rei à entrada em Jerusalém. Esse mesmo. Agora entregue como criminoso. Condenado pelo crime de ser quem era. Filho de Deus. O mesmo que fala de Verdade a Pilatos... O que se mantém silencioso, incomodativamente silencioso, perante Herodes... "O Caminho, a Verdade e a Vida" dá livremente a Sua vida. Derrama livremente o Seu precioso sangue. Porque ama. Porque NOS ama.


Quem quiser prender-se com os tais aspectos técnicos, poderá fazê-lo. Muitos serão os defeitos e as imprecisões que, provavelmente, encontrará. Quanto a mim, prefiro ir mais além. Porque vi a mais perturbante e fascinante representação de algo absurdamente belo e misterioso. O filme, é só um pretexto para se falar disso.